Close, jogação e resistência
Cultura ballroom ocupa espaços e prestigia pessoas pretas e LGBTQIA+ em Florianópolis




Por muito tempo, a referência principal à cultura ballroom na mídia mainstream foi a música “Vogue” (1990) da Madonna. Hoje, a arte popular está repleta de menções à ballroom, sejam elas mais diretas — como a série Pose (2018 - 2021) da Netflix ou o álbum Renaissance (2021) da Beyoncé — ou mais dispersas — como um ou outro passo de dança em um clipe da Ariana Grande.
Originada em Nova Iorque em meados do século XX, a cultura ballroom, conhecida por suas diversas formas de expressão, como a dança, a moda e a performance, agrupa minorias sociais e coloca o corpo negro e LGBTQIA+ como protagonista. O movimento é popularmente conhecido por sua forma máxima de expressão: a ball (baile em inglês), evento em que integrantes dessa comunidade se reúnem para performar e competir entre si em frente a um público. Mas a cultura ballroom é muito mais que uma festa.
Florianópolis não ficou de fora. Desde o início da década de 2020, encontros para a celebração de ballroom se tornaram comuns e ocupam boates, bares, escolas de dança e espaços públicos da cidade. Nesses locais, integrantes de uma comunidade preta e LGBTQIA+ discriminada pela sociedade conservadora sobem ao palco como rainhas, reis, princesas e príncipes.
Essa atenção também está crescendo no âmbito estatal — eventos da ballroom premiados por editais públicos estão se tornando mais frequentes e, além de serem muito aguardados pela comunidade, costumam atrair novas pessoas.
Este ano, o mês do orgulho encerrou com um deles: a “1ª Residência Ballroom Casa das Duras: jogar, resistir e sonhar”, que propôs uma imersão nessa cultura.
O evento, organizado pela Casa das Duras, fundada em Florianópolis, ofereceu workshops, palestras e uma ball com entradas gratuitas.
A residência foi selecionada pelo edital “Retomada 2023 - Dança” da Fundação Nacional das Artes (Funarte). Na Mostra Ball, que encerrou o evento, pessoas da cena local e de outras cidades se reuniram para “caminhar” — ou seja, competir — em diversas categorias e concorrer a prêmios.


Este ano, Florianópolis ainda teve outro grande projeto com financiamento estatal: a Maratona Ball, selecionada por meio do Edital Aldir Blanc 2021, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC). O evento integra a programação da Maratona Cultural, uma das mais relevantes iniciativas multiculturais de Santa Catarina.
O evento contou com disputas em categorias estéticas e de dança vogue. (Vídeo: Ana Muniz)
O evento contou com disputas em categorias estéticas e de dança vogue. (Vídeo: Ana Muniz)
A Maratona Ball ocorreu em 22 de março, em um palco na Escadaria do Rosário, no Centro, atraindo olhares curiosos de quem possivelmente tinha seu primeiro contato com aquela cultura. Desde sua primeira edição, em 2022, a ball é organizada por Diogo Vaz Santiago (37), artista graduado em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC) e empreendedor, conhecido na cena ballroom como Legendary Diogo 007. “Foi muito legal também inserir a cultura ballroom na Maratona Cultural para levar à rua, levar ao espaço público”, explica Diogo. Talvez a Maratona Ball seja, para muitos, o único contato que terão com essa comunidade. Mas o evento é apenas um fragmento de um movimento de protagonismo, resistência e acolhimento negro, latino-americano e LGBTQIA+. É um movimento, uma cena, uma família e uma cultura.
"Não é só close"


Segundo o livro Voguing and the House Ballroom Scene of New York 1989-92, essa cultura começou a ser construída no início do século XX, nas periferias de Nova Iorque. Nessa época, eram realizados concursos de drag queens chamados de “drag balls” (bailes drag). Na década de 1960, ocorreu uma fragmentação por parte das drags pretas que, por se sentirem discriminadas nas competições, passaram a organizar seus próprios bailes.
O documentário The Queen (1968), dirigido por Frank Simon, retrata as vivências de drag queens participantes e organizadoras do concurso de beleza "Miss All-America Camp" de 1967. O trecho acima captura momento em que a queen negra Crystal LaBeija, após não se classificar no pódio da competição, sai do palco para demonstrar sua revolta.
Foi em uma dessas balls, em 1972, que Crystal LaBeija, drag queen e mulher trans negra, fundou a House of LaBeija, a primeira casa de ballroom. Tratava-se de um agrupamento que acolhia pessoas LGBTQIA+ e dava suporte para quem havia sido expulse de seus lares familiares. Uma house, ou casa, não é apenas um grupo: é uma família, um sobrenome para quem a integra. E Crystal era mais que a fundadora de um grupo, era uma mother (mãe) que “adotava” e apoiava pessoas queer. Hoje, esses coletivos que iniciaram com a LaBeija existem por todo o mundo.

Só décadas depois o movimento se estabeleceria no Brasil com o surgimento da primeira casa em 2015, no Distrito Federal: a House of Hands Up, fundada pela travesti Eduarda Kona Zion. Não levou muito tempo para que chegasse em Florianópolis — em 2017, ocorreram as primeiras articulações da cena ballroom na ilha. Naquele ano, na Kirinus Escola de Dança, a cena manezinha começava a ganhar forma no “Laboratório Vogue”, local para estudos e experimentações de dança vogue ou voguing. Esse estilo, embora tenha ganhado fama com a canção homônima de 1990 da cantora Madonna e seja associado frequentemente à pop star, nasceu na cultura ballroom muito antes do lançamento. Nas primeiros bailes, era comum que concorrentes em uma batalha recriassem poses de revistas de moda — por isso a dança é chamada de vogue, em referência à revista de mesmo nome. Existem três vertentes dessa dança: old way, vogue femme e new way.
“À medida que a gente foi estudando, fomos entendendo que essa dança fazia parte de movimento muito maior”, conta Diogo, que foi um dos integrantes do Laboratório. “Não é só close. Tinha uma cultura muito mais aprofundada, com um propósito muito mais interessante do que simplesmente arrasar na pista de dança”.
A partir desses estudos, foi fundada a primeira casa de Florianópolis e do sul do Brasil. Em 2018, nasceu a House of Sorcerers, com o father (ou pai) Ednei e mother (ou mãe) Will Mario, que também faziam parte do Laboratório. A ideia foi de Ednei, conhecido hoje como Pioneer Ed 007, que havia participado da “BH Fever” em 2015, uma das primeiras balls brasileiras. “Foi tipo assim: ‘vamo?’, ‘vamo’. ‘É isso, você é a mãe e eu sou o pai’”, lembra Will.
Hoje a house usa o nome traduzido para o português, Casa das Feiticeiras. Segundo a cofundadora, é comum na comunidade que, com o aumento da intimidade, várias das palavras em inglês comecem a ser substituídas por termos em português. “Mother, father e house pouca gente usa. Usamos mãe, pai e casa”, explica. “Por questão do afeto, pelos laços que a gente vai criando”. Assim, o inglês fica restrito a termos técnicos ou de difícil tradução.
Integrantes do Laboratório Vogue se tornaram, então, algumas das primeiras personalidades da ballroom florianopolitana. Algumas, como Will e Izhy, respectivamente mãe e pai das Feiticeiras atualmente, dão aulas de vogue em academias de dança na ilha. Outras, como Diogo e Ednei, mesmo após deixar a cidade e a house, são respeitadas pela comunidade regional e foram recompensadas com títulos de status. A Diogo foi designado o nome “Legendary” (inglês para lendário), e Ednei leva o título de “Pioneer” (inglês para pioneiro).

Ao longo dos anos, cada vez mais pessoas passaram pelas Feiticeiras. Uma delas foi Lee Feiticeiras que, após ir para sua primeira ball, teve interesse em aprender vogue com Izhy. “Fiquei enchendo o saco no ouvido dele até que ele conseguiu uma bolsa para mim na Mutama, escola de dança em que ele dá aula”. A partir daí, focou seus aprendizados na vertente do vogue femme e em sua primeira competição foi adotado por Izhy. Depois, recebeu o título de príncipe da casa. Hoje, estuda medicina veterinária no Espírito Santo, mas ainda faz parte da house, formando um de seus vários “capítulos” — semelhantes a “filiais” de uma casa em locais diferentes de sua origem. Além de Lee, as Feiticeiras têm capítulos em cidades como Itajaí, Porto Alegre e Curitiba.
Lee voltou a Florianópolis para participar da Mostra Ball, que encerrou a 1ª Residência Ballroom Casa das Duras, nas categorias runway (passarela) e face (rosto). (Foto: Ana Muniz)
Fala de Izhy Feiticeiras na abertura do Feitiço: Laboratório Ballroom de novembro de 2023, no bar Opium. (Vídeo: Ana Muniz)
Fala de Izhy Feiticeiras na abertura do Feitiço: Laboratório Ballroom de novembro de 2023, no bar Opium. (Vídeo: Ana Muniz)
Enquanto isso, a segunda casa de Florianópolis já dava seus primeiros passos desde 2019. Em sua maioria, as integrantes da Casa das Duras eram travestis e pessoas trans que moravam no módulo 3 da moradia estudantil da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Além de colocarem um som para “jogarem” juntas e estudarem sobre a ballroom, acolhiam e apoiavam umas às outras diante de situações de vulnerabilidade socioeconômica que enfrentavam. “Ali a gente comentava, ensaiava, pensava e vivia de forma coletiva como casa”, explica Re Moraes, multiartista e mãe da house.
Ela e Dudazone, estudante de Artes Cênicas na UFSC e também mãe das Duras, ambas travestis pretas, construíram a casa norteadas pelo protagonismo trans e racializado por sentirem falta desse recorte na cena do sul do Brasil. “Tinham pessoas pretas e LGBTs que se articulavam dentro das outras casas, mas não com a nossa visão de ter as pessoas pretas, trans e indígenas como um foco, como acesso principal”, explica Dudazone. Em 2022, as Duras começaram a ser reconhecidas enquanto house catarinense, após iniciarem mais articulações com a comunidade ballroom. Hoje, são responsáveis por fomentar e organizar vários dos eventos da cena.
Além de mother da Casa das Duras, Re Moraes é rapper. (Foto: Trindadead)
Além de mother da Casa das Duras, Re Moraes é rapper. (Foto: Trindadead)
Dudazone trabalha com produção cultural, com foco em arte independente. (Foto: Trindadead)
Dudazone trabalha com produção cultural, com foco em arte independente. (Foto: Trindadead)
Integrantes da Casa das Duras na Mostra Ball, parte da “1ª Residência Ballroom Casa das Duras: jogar, resistir e sonhar”. (Foto: Trindadead)
Integrantes da Casa das Duras na Mostra Ball, parte da “1ª Residência Ballroom Casa das Duras: jogar, resistir e sonhar”. (Foto: Trindadead)
As Feiticeiras e as Duras são as únicas casas fundadas em Florianópolis. Porém não são as únicas presentes na ilha. É comum que houses de fora, como a Índigo, de Joinville, e a Alavalanx, de São Paulo, adotem filhes que moram em Florianópolis e, assim, tenham um capítulo na cidade. Esse foi o caso de Eros Índigo. Ele recebeu o título de “príncipe” na última Maratona Ball, mas ainda em 2022 sequer imaginava que poderia ser adotado pela house.
Na Maratona Ball, Eros disputou na categoria pose. (Foto: Bolívar Alencastro/@bolivar.alencastro)
Na Maratona Ball, Eros disputou na categoria pose. (Foto: Bolívar Alencastro/@bolivar.alencastro)
Eros foi chamado pela Casa Índigo em outubro de 2022, após disputar em sua primeira ball como 007 — pessoa que não pertence a nenhuma casa. “Para mim não existia essa outra opção de entrar numa casa que não fosse a das Feiticeiras aqui em Floripa”, diz. “Quando entendi que eu podia representar a Índigo aqui, foi uma virada de chave muito chique”.
Brix Índigo, adotade em julho de 2023, era alune de vogue do Izhy e também esperava o convite da casa florianopolitana. Porém, quando recebeu via mensagem no Instagram o convite para ser Índigo, a felicidade não poderia ter sido maior: “chorei como se tivesse ganhado na Mega-Sena”.
Brix (à esquerda) também competiu em “pose” na Maratona Ball e venceu a categoria. (Foto: Bolívar Alencastro/@bolivar.alencastro)
Brix (à esquerda) também competiu em “pose” na Maratona Ball e foi a vencedora da categoria. (Foto: Bolívar Alencastro/@bolivar.alencastro)
Após ganhar o Grand Prize (o prêmio final) em “pose”, Brix se emocionou no palco da Maratona Ball. (Vídeo: Ana Muniz)
Após ganhar o Grand Prize (o prêmio final) em “pose”, Brix se emocionou no palco da Maratona Ball. (Vídeo: Ana Muniz)
A Índigo, mesmo não sendo de Florianópolis, se tornou uma rede de apoio essencial para Brix, que não é do sul. Sem muito contato com seus parentes biológicos e longe de Manaus, onde cresceu, encontrou na casa um lugar de aceitação, amor e admiração. “Tem um significado extremamente delicado e precioso, de conseguir me resgatar, de me sentir pertencente”. Muitas vezes, esse acolhimento é importante até para quem não está buscando uma rede. Eros, que é do interior de São Paulo, sempre teve boas relações familiares e de amizade. Mas achou algo diferente nessa comunidade. “Ter essa rede de artistas, de pessoas potentes ao meu lado, era uma coisa que eu não sabia que precisava”, conta. “Não é uma conexão que tenho com minhas amigas ou com minha família, é um outro tipo de conexão, muito intensa e muito bizarra”.

As casas podem ter papéis diferentes para a vida de cada indivíduo. Para Lee, fazer parte das Feiticeiras, além de fundamental para seu autoconhecimento enquanto pessoa transmasculina, foi uma forma de mudar para melhor o relacionamento com seus parentes de berço. “Sinto que eu entrei em paz com a minha família de sangue depois de conseguir chamar o Izhy de pai, chamar a Will de mãe. Parece que ressignifica esses lugares de parentesco”. E não são apenas filhes que recebem suporte — mothers e fathers também. “Sempre falo que sou mãe e filha das minhas filhas”, diz Will. Foi nas Feiticeiras que a mother, depois de ver tantes filhes transicionando, encontrou confiança para começar a se identificar como trans não-binária. “Todo dia a gente acolhe ou é acolhida”, afirma.
Segundo Will, viver na cultura ballroom "não é sábado de noite, é segunda-feira de manhã. Acolhimento é isso". (Foto: Ana Muniz)
Segundo Will, viver na cultura ballroom "não é sábado de noite, é segunda-feira de manhã. Acolhimento é isso". (Foto: Ana Muniz)
Além das casas, a cena como um todo se torna um local de segurança e identificação para muites. Diogo, que viu essa rede ser construída do zero na capital, a descreve como um “divisor de águas” em sua vida. “Foi um espaço que abriu minha cabeça para eu ter contato com pessoas mais próximas a mim, para eu discutir assuntos relevantes, sem medo de julgamentos”, relata. Lee também usa a mesma expressão que Diogo para falar da sua entrada na cena ballroom — divisor de águas.
“É como se chegasse na ballroom e você sentisse: aqui posso ser eu mesmo. Aqui, quando eu falar uma coisa mais ‘aviadada’ ou qualquer gíria LGBT, as pessoas vão entender”.
Lee (à esquerda) ao lado de outres integrantes da Casa das Feiticeiras. (Foto: Ana Muniz)
Lee (à esquerda) ao lado de outres integrantes da Casa das Feiticeiras. (Foto: Ana Muniz)
“Nós somos, além de tudo, um espetáculo”


De acordo com Brix, na linha do tempo de quem vive a ballroom, existe um momento que muda tudo: a primeira ball. “Existe você antes e depois de ir em uma”, completa. Isso porque esse é o evento central da comunidade — transcende um simples evento. No documentário Paris is Burning (1990), a drag queen Pepper Labeija, mother da House of Labeija no período de produção do longa, diz que, para pessoas queer, as balls são como uma “fantasia de ser uma ‘super estrela’”.
Trecho do documentário Paris is Burning, que retrata a cena ballroom de Nova Iorque nos anos 1980, e se tornou icônico para a comunidade LGBTQIA+.
Trecho do documentário Paris is Burning, que retrata a cena ballroom de Nova Iorque nos anos 1980, e se tornou icônico para a comunidade LGBTQIA+.
Nela, ocorrem uma série de disputas divididas por categorias, geralmente classificadas como estéticas ou dançantes, analisadas por um júri e narradas por chanters. Na ball, há espaço para todo tipo de talento. Nas categorias de vogue, ganha quem dança com mais habilidade. Já em face, o rosto mais bonito vence. Em fashion killa, leva o prêmio quem veste a melhor roupa. Qualquer pessoa da plateia pode se candidatar para competir. Se for aprovada pelo painel de jurades, receberá seus tens (plural da palavra “dez” em inglês) e poderá participar das batalhas. Participantes que não cumprem os requisitos exigidos da competição levam chop ("corte" em inglês) e estão fora da disputa. Quem vence todas as batalhas de uma categoria recebe um Grand Prize — ou seja, o prêmio final.
De 2017 a 2020, não ocorriam muitos eventos da ballroom em Florianópolis. Mesmo com a Casa das Feiticeiras já formada e as Duras em construção, faltavam estrutura, dinheiro e público. Na época, segundo Diogo, eram feitas apresentações demonstrativas e “mini-balls”. Nessas, integrantes da Casa das Feiticeiras batalhavam entre si (algo que geralmente não acontece nos bailes oficiais). “Com isso a gente ia conquistando mais pessoas”, diz.
O primeiro grande encontro da cena catarinense ocorreria apenas em novembro de 2021. Foi o "Floripa is Burning", cujo título faz alusão ao documentário Paris is Burning (1990).
O projeto foi selecionado pelo Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura de 2020. Legendary Diogo, que fez a inscrição para o edital, foi responsável por coordenar a organização.
Com três dias de duração, o evento organizou uma roda de conversa, workshops dos três diferentes estilos de vogue — old way, femme e new way —, e, no último dia, a Ball do Sul. Foi realizada no Centro Social Urbano, no bairro Saco dos Limões, e teve nove categorias de competição. Grand Prizes em troféus e dinheiro foram entregues às pessoas que ganharam.
Segundo Lee Feiticeiras, o "Floripa is Burning" foi o seu primeiro contato com a ballroom. Já havia ouvido falar por meio da série Pose, mas não tinha muita informação sobre a cultura, principalmente no Brasil. “Eu cheguei e fiquei em choque”, diz Lee. “Naquele momento, eu já sabia que eu precisava [fazer parte], não só queria”.
Diogo lembra de conhecer Lee naqueles dias, assim como várias outras pessoas que entraram para o universo da ballroom naquele evento. Como a Ball do Sul foi uma das primeiras a ser realizada na região sul do Brasil depois do período de confinação pela Covid-19, atraiu muitas pessoas de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.
Apesar de morar nos Estados Unidos atualmente, Diogo segue promovendo eventos como a Maratona Ball na capital catarinense. Também continua inscrevendo projetos em editais e lutando para conseguir fazer a segunda edição do Floripa is Burning. Um dos seus principais objetivos com esses trabalhos é conseguir trazer renda para indivíduos LGBTQIA+. Ao contratar equipes de produção para os eventos, sempre prioriza pessoas queer. “Percebo como isso é importante para a nossa comunidade”, afirma, “me sinto feliz em contribuir dessa forma”.
Após a Ball do Sul, a potência da ballroom como fonte de renda e serviço de arte e entretenimento tornou-se mais evidente. “A gente viu aquela estrutura e falou ‘nós somos, além de tudo, um espetáculo’”, diz Will Feiticeiras.




Além dos projetos executados por meio de editais, tanto a Casa das Feiticeiras como a Casa das Duras produziram balls, mini-balls, apresentações e outras ações nos últimos anos. Para isso, fazem parcerias e recebem patrocínios ou apoios de instituições e estabelecimentos como bares, espaços culturais e escolas de dança. Às vezes, balls são levadas até para espaços públicos, como a UFSCunt Ball das Feiticeiras, que reuniu a cena no hall externo do Centro de Cultura e Eventos da UFSC, e a Legaliza Ball das Duras, na Praça Tancredo Neves.
A Legaliza Ball foi realizada em setembro de 2023 logo após a Marcha da Maconha de Floripa. (Vídeo: Ana Muniz)
A Legaliza Ball foi realizada em setembro de 2023 logo após a Marcha da Maconha de Floripa. (Vídeo: Ana Muniz)
Algumas, principalmente as que ocorrem em locais abertos e não exigem ingresso para a entrada, são didáticas com quem participa. Nesses casos, é comum que o júri interrompa as disputas para explicar uma categoria ou orientar as performances. As explicações muitas vezes também podem ser direcionadas para o público, parte fundamental de uma ball. É comum que chanters chamem o público e ensinem gestos e bordões da cultura, como “segura essa pose para mim”, frase dita quando o tempo de uma disputa acaba. “O jogo com a plateia faz parte e é o que movimenta, que faz todo o rolê acontecer”, explica Diogo.
A força política de uma ball


Nem todo iniciante, ou melhor, baby da cena ballroom em Florianópolis começa caminhando em uma ball. É comum que antes passe por jogações em treinos, aulas ou outros eventos. A porta de entrada para Brix Índigo foi a “Feitiço: Laboratório Ballroom”, evento promovido pela Casa das Feiticeiras no bar Opium, no Centro, mensalmente. A proposta da festa é promover performances da cultura ballroom e criar um ambiente de experimentações em categorias e dinâmicas de balls. Assim como foi no caso de Brix, é possível ver na Feitiço as primeiras caminhadas de muitas pessoas novas na cena. E não são apenas performers que comparecem ao evento — existe sempre uma plateia que paga para assistir ao espetáculo. O evento ocorre todos os meses no mesmo bar — as Feiticeiras têm uma parceria fixa com o estabelecimento.
“A gente está expandindo”, afirma Will, “os espaços e as produtoras olham para a gente e veem como algo que não é uma aberturinha, uma coisinha pra divertir as pessoas, entendem a força política de uma ball”.
Feitiço de novembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de novembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de setembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de setembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de setembro de 2023. (Foto: Ana Muniz)
Feitiço de novembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de novembro de 2023. Foto: Ana Muniz
Feitiço de setembro de 2023. Foto: Marcela Catelan e Ana Júlia Gonçalves
Feitiço de setembro de 2023. Foto: Marcela Catelan e Ana Júlia Gonçalves
Essa potência é reforçada não apenas por mães e pais: uma nova geração de filhes está começando a movimentar a cena, colaborando entre si para organizar desde aulas gratuitas a eventos como balls. Para quem frequenta a UFSC, é comum ver treinos abertos no Varandão do Centro de Comunicação e Expressão (CCE) ou no Centro de Ciências da Educação (CED).
Os treinos abertos, que costumavam ser esporádicos, passaram a se tornar frequentes em 2022. Lee Feiticeiras foi responsável por organizar alguns dos primeiros encontros. No início, eram exclusivos para transmasculines. “Quando eu comecei a caminhar, me incomodou o fato de não ter pessoas transmasculinas caminhando na cena”, afirma Lee. “Mesmo dentro da comunidade, muitas vezes a gente é invisibilizado”. Com o tempo, os treinos se tornaram liberados para todes. Segundo Lee, eram momentos que atraíam muitos olhares curiosos. “Tem bastante gente interessada, mas não é todo mundo que se joga. Só vai lá dar uma olhadinha, mas não quer participar do treino”.
Mesmo morando fora do estado, Lee ajuda a promover os eventos arranjados por e para pessoas transmasculinas, incluindo os treinos que ocorrem nas terças-feiras. O príncipe das Feiticeiras também está envolvido em outra iniciativa que realiza treinamentos para a cena ballroom da ilha: o Floripa Kunt, coletivo nascido no início do ano a partir da colaboração entre integrantes da Casa das Feiticeiras e da Casa Índigo.
O objetivo do Floripa Kunt é fomentar a ballroom na capital catarinense e se tornar uma referência para a cultura. “Esperamos que a gente atinja cada vez mais pessoas que não sabem o que é a cena, de outras vertentes de dança, ou que já conhecem a cena e querem se envolver e entender esse universo”, explica Brix, que também integra o coletivo. Além de treinos nas segundas-feiras, o Floripa Kunt também promoveu sessões de estudo, práticas e uma ball em abril, a Kunt com K.
Treino colaborativo entre o Floripa Kunt e o coletivo de transmasculines da cena ballroom de Santa Catarina.
Quem acompanha de perto a cena ballroom de Florianópolis desde o seu início consegue enxergar que ela está vivendo um momento de alta.
“Hoje a gente olha pra trás e vê as coisas que acontecem… As nossas filhas fazerem uma ball em que a gente não esteja envolvida, por exemplo. Já está fora das nossas mãos”, reflete Will. “Gente velha sai e gente nova entra pra fazer acontecer”.
